Essa transformação está baseada no crescimento dos canais digitais de venda e distribuição de produtos e serviços entre países em escala global através do avanço do cross border.
Nos Estados Unidos, Ásia, Europa e Brasil, o sistema cresceu em volume físico e financeiro, e percebeu-se que alternativas criadas para atender a remessas individuais de consumidores para consumidores – peer-to-peer (P2P) – em bases unitárias passaram a ser usadas indevidamente para transações comerciais com corporações globais, usando esse artifício para burlar a taxação de importação, controle e transferência de produtos.
No Brasil esse tema suscitou profundas discussões entre os representantes dos setores formais da economia, em especial os produtores de bens de consumo, os serviços agregados e o varejo, pela inequidade competitiva, uma vez que a entrada descontrolada desses produtos, isentos de controle e taxação, concorria de forma desleal com o que é produzido e distribuído no País, ainda onerado pelos impostos e mais todos os controles criados para proteger o consumidor.
Como resultado, os produtos eram vendidos sem impostos e outros custos por não estarem sujeitos a todas as regulamentações envolvendo padrões, controles de qualidade e especificações técnicas dos produtos produzidos aqui e revendidos no mercado formal. Era a instituição da informalidade global com a condescendência estatal.
O aumento do volume dessas transações não tributadas em 2023 determinou quedas nas vendas e nos impostos recolhidos pela indústria local, pelos serviços associados e pelo varejo tradicional, e levou à redução de quadro de funcionários nesses setores, perda de renda pela diminuição de mão de obra nas categorias envolvidas e mais a redução de investimentos nesses setores.
Sem mencionar os problemas financeiros enfrentados por várias empresas, tanto na indústria quanto no varejo, incapazes de concorrer com a situação e num cenário de altas taxas de juros e crédito caro e limitado.
Importante lembrar que, no Brasil, o varejo tradicional, não exclusivamente digital, representa ainda perto de 90% de todos os negócios do setor, e que nos próximos dez anos deverá continuar a representar de 70% a 80% das vendas, porém cada vez mais combinando canais de vendas e distribuição, dentro dos conceitos de omnicanalidade.
Vale lembrar que entre os serviços associados ao varejo estão inclusos os veículos de comunicação, empresas financeiras e de meios de pagamentos, os negócios de logística e distribuição e mais todos os serviços integrados na cadeia de valor do consumo.
É importante registrar que o comércio e o varejo, nos seus diversos formatos de lojas, canais, categorias e modelos de negócio, ainda são os maiores empregadores privados do Brasil.
Estimulado pela perspectiva de aumento de arrecadação numa situação de evidente necessidade, o Ministério da Fazenda se envolveu e criou o Programa Remessa Conforme, impondo um maior nível de controle na verificação dessas entradas cross border e uma taxação de 17% de ICMS. Mas manteve a isenção da taxação do imposto de importação e criou a expectativa de que isso pudesse ser feito num futuro próximo.
Isso ainda não ocorreu e essa situação está mantida em evidente desigualdade competitiva, comprometendo o futuro desses segmentos, geração de empregos e desestimulando qualquer forma de investimento.
Nenhuma empresa, setor ou entidade pode ser contra a inevitável evolução desde que assegurada a igualdade competitiva, em especial na vertente tributária e de normas e regras de autuação.
O que num primeiro momento atingiu de forma mais direta os setores ligados à moda, confecção e calçados, gradativamente se expandiu para outros segmentos envolvendo ótica, artigos de uso e cuidados pessoais, bem-estar, eletroeletrônicos, papelaria e até material de acabamento e construção.
No quadro atual esse benefício da isenção de imposto de importação e controles só é possível para quem remete do exterior para o mercado interno. Definitivamente são esses que não se importam com a perda de emprego, salários e investimentos no mercado interno.
E é essa situação competitiva desigual que tem sido valorizada de forma míope, ou com outros interesses, por quem vê as compras isentas de impostos e controles como um benefício imediato para consumidores mesmo que comprometendo o futuro desses setores.
O cross border é de fato um avanço nas relações de consumo no mundo, com muitos aspectos positivos que a indústria, as marcas e o próprio varejo devem considerar na expansão e modernização dos negócios levando produtos, conceitos e a imagem Brasil para o exterior.
Porém, é fundamental que exista equidade competitiva em todos os casos, de forma a assegurar regras justas e isonômicas para preservar emprego, renda e investimentos.
Sem isso, pode-se comprometer o futuro pelo devaneio do presente.
Marcos Gouvêa de Souza — Sócio-fundador da Gouvêa Ecosystem, membro do conselho do Instituto para Desenvolvimento do Varejo (IDV) e do Instituto Foodservice Brasil (IFB), é moderador da iniciativa Projeto para a Nação